domingo, 24 de novembro de 2013

O que os olhos não podem ver

O relógio biológico de Catarina tocou. Sentou-se a cama e seu quarto mantinha-se escuro, visto que as cortinas continuam fechadas. Pôs seus pés no assoalho frio e deixou a cama desarrumada. 
Com os cabelos embaraçados e seu pijama rosa claro – presente de sua mãe no último aniversário – desceu as escadas de seu chalé. No aparador, encostado a parede no canto da sala, haviam porta-retratos empoeirados e com imagens de pessoas felizes de revista. 
À cozinha, encheu uma xícara de água, programou o micro-ondas para esquentá-la e misturou o pó do café pré-preparado. Acomodou-se no sofá, tentando esquentar seus pés nas almofadas de canto. Os grilos e os pássaros cantavam lá fora. 
Domingos não são mais dias em que a família se reúne para um farto almoço na casa de sua avó. Muito menos, são dias para dar risadas à beira da piscina. Domingos são dias de nada. O tempo passa lentamente pelo relógio enquanto Catarina vaga por entre os cômodos da casa tentando desviar das peças de roupas jogadas ao chão. 
O chalé em que Catarina mora, fica ao centro de um verde terreno. Vidraças altas e largas fazem-se paredes. Madeiras vistosas compõem os pilares de sustentação. Os banheiros e a cozinha tem um acabamento suavizado com tijolinhos à vista. O telhado, inclinado, dava um toque rústico. A casa havia sido projetada pelo seu falecido pai que não teve tempo para vê-la erguer-se. 
Todas as cortinas mantinham-se fechadas, para que a claridade ficasse do lado de fora de sua vida. Esquentou restos para o almoço. 
Enquanto comia, ligou o rádio em busca de qualquer coisa que tirasse a felicidade dos pássaros da sua audição. Aquela música tocou. A melodia que invadia sua alma e desafiava seus instintos. Voz e violão que eram capazes de fazê-la transportar-se para aqueles dias de cor e pé-do-ouvido. Largou os talheres e dedicou exclusiva atenção para aquele sussurro memorial que lhe fizera arrepiar da cabeça aos pés da primeira vez que ouvira.
Jogou o prato na pia, sem nem ao menos terminar a refeição. Aproximou-se das cortinas e esticou seus braços para abri-las. Repetiu o movimento em todas elas. O dia nublado lá fora trazia a sensação de um dia nulo. Aquela cômoda sensação de que é melhor ficar ali trancada  esperando anoitecer, ao ter que acostumar-se com o cinza celeste. 
Deitou-se de barriga pra cima no tapete, chacoalhando os pés para um lado e para o outro. Contou cada tábua do teto de trás pra frente e de frente pra trás. Incomodada, arrastou-se até a estante de livros e tirou qualquer antologia poética, mas espirrou. Levantou-se e debruçou-se sobre a vidraça lateral direita para observar o nada lá fora. Viu um vaso quebrado. Arrastou seu dedo pelo vidro e depois o limpou na calça de seu pijama cor-de-rosa. Um rastro preto ficou ali cravado. 
Observando a poeira em suas vestes, espalmou suas mãos com violência e rapidez nos vidros da sala. Espirrou novamente. Fixou seu olhar em suas palmas e vira a negritude tomar conta das linhas. Aplaudiu a desordem de sua vida. 
Catarina marchou até a lavanderia e enquanto o balde enchia, procurava entre os produtos de limpeza, jogados no canto, algum que lhe servisse. Pegou uma camiseta da última eleição e munida de água e sabão prostrou-se de joelhos às paredes da sala e pôs-se a limpa-las. Esfregava com tanta força que sentia seus braços pedirem socorro. Mas eles precisavam correr riscos para salvar outra vítima.
As marcas da sujeira iam saindo das paredes transparentes. Seu pijama já imundo. O suor que escorria misturava-se a essência do pinho. 
Exausta, jogou-se ao chão e recostou-se na lateral do sofá. O rádio trazia novas composições. Não acreditava no que seus olhos estavam vendo: um azul no céu e raios de sol cobrindo todos os seus móveis. Havia um dia inteiro esperando por ela lá fora. Era a imundice das suas vidraças que não a deixavam ver. 

Augusto Cruz

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