domingo, 24 de novembro de 2013

Vida de Amélia

A chuva cessou e um clarão varreu o céu até que as estrelas voltassem a brilhar. Amélia ocupava-se com seus bordados: um vestido preto, que acentuava sua delicada cintura bailarina, com paetês que enfeitiçavam seu olhar. 
A festa será dela. Lá estarão todas as pessoas com quem ela se importa e quer bem. Família, amigos, colegas de escola e até aqueles a quem conheceu numa fila de bar ou trocando verbos desaforados no trânsito. 
Um banho de sais; toalha felpuda; secador de cabelos. Via seu rosto rosado responder suas ações no espelho e perguntava-se como seria a noite. Quem iria, quem cairia, o que a faria rir, o que a faria chorar. Ansiosa, gostaria de estar lá há muito tempo. 
Maquiagem pronta. Vestiu-se dos paetês brilhantes e seu cabelo, liso e perfumado, sobrevoava seu colo nu. De orelha a orelha, ela estampava a felicidade de ser quem é.
A festa está apenas esperando-a. Todos estão lá nos seus devidos lugares e ela sabia o que fazer. 
Correu para seu armário em busca do sapato que fecharia seu visual. Um sapato camurça, preto. Lembrou-se que ficou dias e dias esperando até tê-lo.  Era seu sonho de consumo. Um sapato lindo que a fazia crescer, lhe dava postura e deixava seu caminhar leve, leve...
Amélia colocou-o em seus pés. Mas, estranhamente, já não lhe causavam o mesmo conforto. Desfilou pela sala; algumas voltas; frente; trás; vai; volta. Há algum tempo que os esquecera ali. Estava apertado, sentia seus pododáctilos esmagarem-se, uns sobre os outros. O calcanhar começara a esfolar. Ele já não a deixava mais com aquela sensação de voo. Parecia um vento pesado e difícil de alcançar. 
Fechou a casa e, entre tropeços, saiu com ele. 
A festa aguardava sua chegada e ela queria que seu sapato- sonho-de-consumo fizesse parte de tudo aquilo. 
Estacionou o carro. Chegou a hora e só tinha duas opções: ou cortava o calcanhar do sapato – o que faria com que o encanto que ele teve um dia desaparecesse por completo - ou enfrentaria a festa mesmo com dor. 
Mas Amélia descalçou-o e seguiu. Era a sua festa: nada a faria desconfortar. O paetê brilhou e Amélia seguiu seu baile com postura e seu caminhar leve, leve...

Augusto Cruz

Nenhum comentário: