quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

O doce luar da primavera

Mais um sábado e eu procurando uma camiseta inédita para a noite. Enrolado na toalha, dou um passo alto para subir a cama e alcançar a prateleira mais alta do meu guarda-roupas. Trilho o lençol com meus pés encharcados pós-banho e respingo gotas no espelho ao sacudir o cabelo. Ouço alguém bater a porta da minha suíte, apressando-me. Grito num tom de verdade que estou quase pronto e pulo dentro de alguma cueca especialmente selecionada para noites em que alguém possa vê-la. Demoro para apertar o cinto (sempre tenho problemas em colocá-los devidamente na calça), demoro para achar meus tênis e demoro mais ainda para conseguir deixar meu cabelo razoavelmente aceitável.
Batem novamente à porta e eu digo que estou indo. Mas na minha mente berra uma voz desesperada que diz: "Puta que pariu, to muito atrasado! Aonde coloquei as chaves? Cade meu cartão? Deixei o cigarro no sofá? Eles vão me matar!"
Chego então à sala, de encontro aos que impacientemente me esperam, disfarçando com o telefone, como se estivesse em uma ligação muito importante (geralmente uso a desculpa de um esquema para a balada, entradas vip, caronas, bebidas e etc. Eles sempre acreditam, é conveniente acharem que me atrasei pensando neles).
Apagam-se as luzes, tranca-se a porta, chama-se o elevador. No caminho até o hall, todos esticam suas vestes em frente ao espelho, dão uma passada de mão nos cabelos, reparam a maquiagem e observam se ficou algum detalhe por deixar. No fim, todos sentem-se satisfeitos com o que apresentam.
No caminho, ingere-se teores elevados de alcool, acompanhados de nicotina mentolada e das queixas femininas adaptando-se ao salto que as sustentará durante toda a festa.
Quando chegamos, não precisamos enfrentar fila. Dar uns pegas no promoter tem suas vantagens. Os seguranças sempre aproveitam para apalpar nossos traseiros, é algo a se questionar. A música lá dentro vibra e dá até uma certa ansiedade oculta, como se fosse a primeira vez. A pouca iluminação, a multidão dançando frenéticamente, os rapazes trocando beijos desesperados pela pista e a fila do bar são clássicos noturnos. Eu, claro, antes de enfrentar a multidão que se proclama frenéticamente afrente do DJ, vou em direção ao bar servir-me de um drink leve para começar a segunda etapa da noite.
Procuro brechas na fila e vou discretamente me infiltrando até alcançar o balcão. Penduro-me para cumprimentar um dos barmans conhecidos e quem sabe obter um desconto. É então que enquanto aguardo minha bebida chegar, avisto lá na ponta uma imponente presença, vestida com camisa gola polo tamanho M, jeans escuro (que devem ter custado caro) e sapatos claros. Um cabelo castanho organizadamente bagunçado e um sorriso largo, limpo, alinhado e perfeitamente desenhado. Aquele sorriso o denunciava. Fingi que não vi nada, servi-me e saí dali meio transtornado. Dei um grande gole na minha birita e achei que precisava lavar meu rosto para me recompor e poder me autoafirmar de que eu não estava abalado. Então o fiz. Caminhei em direção ao banheiro, desviando-me dos corpos suados que estavam por toda parte. Executei o ritual planejado e então, enquanto puxava o papel-toalha para secar minhas mãos ainda cheirando o creme de erva doce que ganhei da minha tia no último natal, senti o perfume que fazia meu coração vibrar. Nada mais naquele lugar conseguia fazer meu corpo entrar num estado tão intenso e incontrolável quanto aquele nostálgico odor. Olhei através do espelho e confirmei que aquele sorriso tão cheiroso estava ali. Fiquei em dúvida de qual decisão tomar: deveria tornar minha presença nula ou encher-me de ego e ser notado? Optei pela segunda, por conveniência. Foi então que ele me disparou olhares confusos que omitiam sua  mistura de surpresa  espanto e felicidade ao me ver. Nos cumprimentamos apenas com o canto da boca e menções positivas com a cabeça, logo depois nossos olhares se encaminharam ao chão e ele tomou destino ao primeiro reservado disponível. Eu então continuei ali intacto, em frente à pia, pensando em alguma maneira de chamar sua atenção de forma mais objetiva. Agachei-me fingindo amarrar o cadarço do tênis (ele sabia que sempre tive dificuldade com isso, no nosso tempo, vivia pedindo seu auxílio), e deixei que minha carteira de motorista, que estava no bolso de trás do meu jeans, caísse ao chão.
Enquanto ele veio ensaboar suas mãos, ajeitei a dobradura na barra da calça e então pus-me em direção à porta. Contei mentalmente até 3, como num instinto involuntário, e o ouvi pronunciar meu nome. Meu plano havia dado certo. Arrepiei-me por todo o corpo e meu estômago ficou tão gelado quanto o drink que me servira. Virei bruscamente, com um levantar de sobrancelhas falsamente desconfiado. Ele acenou portando meu documento em suas mãos tão macias. Mãos que já haviam me tocado por vezes. Mãos cheirosas e brancas que me fazem delirar só de pensar. Soltei um ar de surpresa, andei até sua direção, portei minha habilitação, guardei-a no bolso e então o agradeci. Elegantemente, para minha surpresa, ele soltou uma piadinha referente à época que aprendi a dirigir, alegando o quanto é perigoso que eu seja realmente habilitado a conduzir alguma espécie de veículo. Nesse momento fui ao céu e voltei, mas meu corpo só soube gargalhar. Trocamos conversas bobas por alguns minutos, ali, parados em frente ao lavabo, até eu o convidar a me acompanhar à área de fumantes. Lá pudemos nos sentar, apoiar-nos em uma mesa alta, acender um cigarro e eu ouvir ele reclamar do mal estar que o odor do meu cigarro mentolado o causava: sempre reclamando, era encantador.
Pra falar a verdade, não lembro de ter visto meus amigos naquela noite. Não lembro, para ser sincero, de mais ninguém além de nós dois. Conversamos sobre tantos assustos, sobre tanta besteira, tanta coisa séria, tantos detalhes que não me permitiam prestar atenção no mundo ao meu redor. Naquelas horas eu nem ao menos lembrava que existia outra coisa no mundo a não ser ele. 
A noite ainda estava na metade quando ele disse que precisava ir embora. Tinha uma reunião familiar pela manhã e queria ter algumas horinhas de sono (aquelas tradições de sua família sempre me deixaram fascinado e pelo visto, elas ainda continuavam depois de tanto tempo). Eu então disse que iria procurar meus amigos para também ir embora, já estava com preguiça só de pensar em continuar naquele lugar sem sua presença. Sempre querido, ele me ofereceu uma carona. Falou que não via problema em me deixar em casa e alertou-me de que era pouco provável que encontraria meus amigos em meio a tanta gente alcoolizada. Eu, simulando hesitar, concordei. 
Corremos em direção ao carro para evitar a chuva que caía e recordamos, com risadas, das vezes que ficávamos horas no ponto de ônibus sonhando com o dia que poderíamos dirigir. E ali estavamos nós, dentro de um carro, juntos, só nós dois. Dei as instruções da localização do meu prédio e ele seguiu, sem dificuldades. 
Ficamos alguns minutos conversando em frente ao edificio, enquanto a chuva caía torrencialmente do lado de fora. Na hora do adeus, um abraço bem apertado e de sua parte veio um sutil "obrigado". Não entendi ao certo o que aquela palavra queria dizer. Obrigado pela companhia? Obrigado pela presença? Obrigado por ter esquecido as mágoas do passado? Obrigado por ter perdoado as inúmeras ofensas impensadas das nossas brigas? Resolvi não questioná-lo. Só continuei abraçando-o, hipnotizado por aquele aroma cítrico que vinha tão intenso de seu pescoço. Foi então que parti, correndo para evitar me molhar. Ele, educadíssimo, ficou esperando para ver-me adentrar o hall e então partir. Mas no caminho, ainda na calçada do meu prédio, escorreguei em alguma poça de água e caí com um dos joelhos no chão (uma cena meio ridícula para ser presenciada por ele depois de uma noite tão agradável. Eu parecia como aqueles dançarinos  de street dance na posição final de uma coreografia, patético). Ele saiu do carro, correndo, e veio ver se estava tudo bem comigo. Ajudou-me a levantar e fui apoiando-me em seu ombro, enquanto mancava, até a marquise do prédio. Dei uma olhada na minha perna e havia um pequeno corte, que sangrava, em meu joelho. Nós dois então sentamos na escada do edifício e nos pusemos a rir: encharcados. Esse tipo de coisa só acontecia com a gente, definitivamente.
Eu o convidei para subir até meu apartament, pegar uma toalha, secar um pouco as suas roupas. Devia pelo menos isso a ele.
Enquanto eu estava no banheiro procurando uma toalha bonita para oferecer à visita, ele observava os retratos na sala e percebeu que estava em um deles. Lembramos do momento em que tiramos aquela foto, foi em uma viagem entre amigos. Entreguei a ele a toalha, tirou sua camisa e pos-se a enchugar-se. Fiquei sentado no sofá, o admirando. Era muito fora da realidade que ele estivera ali na sala do meu apartamento, secando-se na minha toalha (que eu nem havia terminado de pagar) e nós convivendo sem nenhum ressentimento do passado. Fiz um rápido curativo em meu joelho que já não sangrava mais.
Alguns minutos e ele disse que precisava ir. Eu o encaminhei até a porta e no corredor do apartamento, ao nos despedir, nos abraçamos novamente. Um abraço forte, firme, afetivo. Podia sentir seu coração no meu, foi incrível. Indescritível foi o momento em que nossos queixos deixaram de tocar o ombro um do outro mas nossos corpos continuavam abraçados. Olhamos fixamente dentro dos olhos e depois disso, não consigo lembrar-me de visão nenhuma. Lembro-me apenas que foi o beijo mais apaixonado, irreal, surreal, intenso, vivo, desejado e esperado de toda a minha vida. Um beijo longo, suave, forte, recheado de carinho e emoção. Enquanto o beijava, minhas mãos percorriam suas costas nuas, tocavam seus cabelos molhados, suas nádegas redondamente perfeitas. Suas mãos também percorriam meu corpo. Nossos corações aceleravam o rítmo e foi sem dúvida uma das cenas mais marcantes que já tive.
Deitamo-nos, trocando carícias. Senti mais intensa vertigem do paraíso aquela noite. 
Dormi sentindo-o nu em meus braços, da forma que tanto sentia falta. Durante a noite, acordava por alguns segundos e perguntava-me se aquilo era mesmo verdade. Logo fechava meus olhos, pois caso fosse um sonho, não podia perder a chance de que durasse, pelo menos, para sempre.
Senti alguns raios tentando invadir a persiana. Eles clareavam todo o quarto. Ao abrir os olhos vi-me sozinho em minha cama. Olhei ao redor e só havia meus sapatos e minhas roupas  molhadas espalhadas ao chão. Abri a porta do quarto e não havia ninguém ali fora. Despedacei-me. 
Fui então ao banheiro, tentar aquele ritual de recomposição. Abri a torneira e pus-me a enchaguar meu rosto, cansado. Sequei-o com a toalha e ao olhar pro espelho, havia uma mensagem escrita com lápis de olho: "Meu coração estava como sua habilitação: jogado no chão. O juntei e estou levando comigo. Depois do almoço te ligo e veremos como faço para devolvê-lo a você. Obrigado, por absolutamente tudo."

Augusto Cruz

Um comentário:

Anônimo disse...

Um ótimo texto a ser lido! Parabéns.