sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O doce luar da primavera

Mais um sábado e Cristina procurando um vestido inédito para a noite. Enrolada na toalha, deu um passo alto para subir a cama e alcançar a prateleira mais alta do seu guarda-roupas. Trilhou o lençol com seus pés encharcados pós-banho e respingou gotas no espelho ao secar o cabelo. Ouviu alguém bater a porta da sua suíte, apressando-a. Gritou num tom de verdade que estava quase pronta e pulou dentro de alguma calcinha especialmente selecionada para noites em que alguém possa vê-la. Demorou em apertar a alça do sutiã (sempre tem problemas em colocá-las devidamente), demorou em achar um sapato e demorou mais ainda para conseguir deixar seu cabelo razoavelmente aceitável, assim como a maquiagem.
Batem novamente à porta e ela diz que está indo. Mas na sua mente berra uma voz desesperada que diz: "Estou muito atrasada! Aonde coloquei as chaves? Cadê meu cartão? Deixei o cigarro no sofá? Eles vão me matar!".
Chega então à sala, de encontro aos que impacientemente a esperam, disfarçando com o telefone, como se estivesse em uma ligação muito importante (geralmente usa a desculpa de um esquema para a balada, entradas VIP, caronas, bebidas e etc. Eles sempre acreditam, é conveniente acharem que Cristina atrasou-se pensando neles).
Apagam-se as luzes, tranca-se a porta, chama-se o elevador. No caminho até o hall, todos esticam suas vestes em frente ao espelho, dão uma passada de mão nos cabelos, reparam a maquiagem e observam se ficou algum detalhe por deixar. No fim, todos se sentem satisfeitos com o que apresentam.
No caminho, ingerem-se teores elevados de álcool, acompanhados de nicotina mentolada e das queixas femininas adaptando-se ao salto que as sustentará durante toda a festa.
Quando chegam, não precisam enfrentar fila. Cristina já deu uns pegas no promoter e, por isso, tem suas vantagens. Os seguranças sempre aproveitam para apalpar os traseiros, é algo a se questionar. A música lá dentro vibra e Cristina sente até certa ansiedade oculta, como se fosse a primeira vez. A pouca iluminação, a multidão dançando freneticamente, os rapazes trocando beijos desesperados pela pista e a fila do bar são clássicos noturnos. Ela, claro, antes de enfrentar a multidão, que se proclama afrente do DJ, vai em direção ao bar servir-se de um drink leve para começar a segunda etapa da noite.
Procura brechas na fila e vai discretamente se infiltrando até alcançar o balcão. Pendura-se para cumprimentar um dos barmans conhecidos e quem sabe obter um desconto. É então que enquanto aguarda sua bebida chegar, avista lá na ponta uma imponente presença, vestida com camisa gola polo tamanho M, jeans escuro (que devem ter custado caro) e sapatos claros. Um cabelo castanho organizadamente bagunçado e um sorriso largo, limpo, alinhado e perfeitamente desenhado. Aquele sorriso o denunciava. 
Cristina fingiu que não viu nada, serviu-se e saiu dali meio transtornada. Deu um grande gole em sua birita e achou que precisava lavar o rosto para se recompor e poder se autoafirmar de que não estava abalada. Então o fez. Caminhou em direção ao banheiro, desviando-se dos corpos suados que estavam por toda parte. Executou o ritual planejado no lavabo compartilhado por ambos os sexos e então, enquanto puxava o papel-toalha para secar suas mãos ainda cheirando o creme de erva doce que ganhou da sua tia no último natal, foi então que sentiu o perfume que fazia seu coração vibrar. Nada mais naquele lugar conseguia fazer seu corpo entrar num estado tão intenso e incontrolável quanto aquele nostálgico odor. Olhou através do espelho e confirmou que aquele sorriso tão cheiroso estava ali. Ficou em dúvida de qual decisão tomar: deveria tornar sua presença nula ou encher-se de ego e ser notada? Optou pela segunda, por conveniência. Foi então que ele a disparou olhares confusos que omitiam sua mistura de surpresa, espanto e felicidade ao vê-la. Cumprimentaram-se apenas com o canto da boca e menções positivas com a cabeça, logo depois seus olhares se encaminharam ao chão e ele tomou destino ao primeiro reservado disponível. Cristina continuou ali intacta, em frente a pia, pensando em alguma maneira de chamar a atenção dele de forma mais objetiva. Agachou-se fingindo ajeitar o salto e deixou que sua carteira de motorista, que estava em sua bolsa, caísse ao chão.
Enquanto ele veio ensaboar as mãos, Cristina ainda arrumava seu sapato e foi então que pôs-se em direção à porta. Contou mentalmente até três, como num instinto involuntário, e o ouviu pronunciar seu nome. Seu plano havia dado certo. Arrepiou-se por todo o corpo e seu estômago ficou tão gelado quanto o drink que a servira. Virou bruscamente, com um jogar de cabelos hollywoodiano e um levantar de sobrancelhas, falsamente, desconfiado. Ele acenou portando o documento em suas mãos tão macias. Mãos que já haviam a tocado por vezes. Mãos cheirosas e brancas que a fazem delirar só de pensar.
 Soltou um ar de surpresa, andou até a direção dele, portou a habilitação, guardou-a na bolsa e então o agradeceu. Elegantemente, para sua surpresa, ele soltou uma piadinha referente à época que Cristina aprendeu a dirigir, alegando o quanto é perigoso que ela seja realmente habilitada a conduzir alguma espécie de veículo. Nesse momento ela foi ao céu e voltou, mas seu corpo só soube gargalhar. Trocaram conversas bobas por alguns minutos, ali, parados em frente ao lavabo, até ela o convidar para acompanha-la à área de fumantes. Lá puderam se sentar, apoiar-se em uma mesa alta, acender um cigarro e o ouvir reclamar do mal estar que o odor do cigarro mentolado dela o causava: sempre reclamando, era encantador.
Para falar a verdade, Cristina não viu seus amigos naquela noite. Não lembrava-se de mais ninguém além deles dois. Conversaram sobre tantos assuntos, sobre tanta besteira, tanta coisa séria, tantos detalhes que não a permitiam prestar atenção no mundo ao seu redor. Naquelas horas ela nem ao menos lembrava-se que existia outra coisa no mundo a não ser ele. 
A noite ainda estava na metade quando ele disse que precisava ir embora. Tinha uma reunião familiar pela manhã e queria ter algumas horinhas de sono – aquelas tradições de sua família sempre a deixaram fascinada e pelo visto, elas ainda continuavam depois de tanto tempo. Ela disse que iria procurar seus amigos para também ir embora – já estava com preguiça só de pensar em continuar naquele lugar sem a presença dele. Sempre querido, ele a ofereceu uma carona. Falou que não via problema em deixa-la em casa e alertou de que era pouco provável que ela viesse a encontrar seus amigos em meio a tanta gente alcoolizada. Cristina, simulando hesitar, concordou. 
Correram em direção ao carro para evitar a chuva que caía e recordaram, com risadas, das vezes que ficavam horas no ponto de ônibus sonhando com o dia que poderiam dirigir. E ali estavam eles, dentro de um carro, juntos, só os dois. Ela deu as instruções da localização do seu prédio e ele seguiu, sem dificuldades. 
Ficaram alguns minutos conversando em frente ao edifício, enquanto a chuva caía torrencialmente do lado de fora. Na hora do adeus, um abraço bem apertado e da parte dele, veio um sutil "obrigado". Cristina não entendeu ao certo o que aquela palavra queria dizer. Obrigado pela companhia? Obrigado pela presença? Obrigado por ter esquecido as mágoas do passado? Obrigado por ter perdoado as inúmeras ofensas impensadas de suas brigas? Resolveu não questiona-lo. Só continuou abraçando-o, hipnotizada por aquele aroma cítrico que vinha tão intenso de seu pescoço. Foi então que ela partiu, correndo para evitar se molhar. Ele, educadíssimo, ficou esperando para vê-la adentrar o hall e então seguir. Mas no caminho, ainda na calçada do seu prédio, a jovem escorregou em alguma poça de água e caiu com um dos joelhos no chão. Ele saiu do carro, apressado, e veio ver se estava tudo bem. Ajudou a levanta-la e ela foi apoiando-se no ombro dele, enquanto mancava, até a marquise do prédio. Deu uma olhada em sua perna esquerda e havia um pequeno corte, que sangrava, em seu joelho. Os dois sentaram na escada do edifício e puseram-se a rir: encharcados. Esse tipo de coisa só acontecia com eles, definitivamente.
Ela o convidou para subirem até seu apartamento, pegar uma toalha, secar um pouco as suas roupas. Devia pelo menos isso a ele.
Enquanto ela estava no banheiro procurando uma toalha bonita para oferecer à visita, ele observava os retratos na sala e percebeu que estava em um deles. Lembraram-se do momento em que tiraram aquela foto, foi em uma viagem entre amigos. Entregou a ele a toalha, que tirou sua camisa e pôs-se a enxugar-se. Cristina ficou sentada no sofá, admirando-o. Era muito fora da realidade que ele estivera ali na sala do seu apartamento, secando-se na sua toalha (que ela nem havia terminado de pagar) e os dois convivendo sem nenhum ressentimento do passado. Ela fez um rápido curativo no joelho que já não sangrava mais.
Alguns minutos e ele disse que precisava ir. Ela o encaminhou até a porta e no corredor do apartamento, ao despedirem-se, se abraçaram novamente. Um abraço forte, firme, afetivo. Podiam sentir seus corações palpitando. Indescritível foi o momento em que seus queixos deixaram de tocar o ombro um do outro, mas seus corpos continuavam abraçados. Olharam fixamente dentro dos olhos e depois disso, Cristina perdeu a visão. Lembra-se apenas que foi o beijo mais apaixonado, irreal, surreal, intenso, vivo, desejado e esperado de toda a sua vida. Um beijo longo, suave, forte, recheado de carinho e emoção. Enquanto o beijava, suas mãos percorriam as másculas costas nuas, tocavam os cabelos molhados dele, suas nádegas redondamente perfeitas. As mãos dele também percorriam o corpo dela. Os dois corações aceleravam o ritmo e foi sem dúvida uma das cenas mais marcantes que já tiveram.
Deitaram-se, trocando carícias. Ela sentiu a mais intensa vertigem do paraíso aquela noite. 
Dormiu sentindo-o nu em seus braços, da forma que tanto sentia falta. Durante a noite, acordava por alguns segundos e perguntava-se se aquilo era mesmo verdade. Logo fechava os olhos, pois caso fosse um sonho, não podia perder a chance de que durasse, pelo menos, para sempre.
Cristina percebeu alguns raios tentando invadir a persiana. Eles clareavam todo o quarto. Ao abrir os olhos viu-se sozinha em sua cama. Olhou ao redor e só havia seus sapatos e suas roupas molhadas espalhadas ao chão. Abriu a porta do quarto e não havia ninguém ali fora. Despedaçou-se. 
Foi então ao banheiro, tentou aquele ritual de recomposição novamente. Abriu a torneira e pôs-se a enxaguar seu rosto cansado. Secou-o com a toalha e ao olhar para o espelho, havia uma mensagem escrita, com lápis de olho: "Meu coração estava como sua habilitação: jogado no chão. O juntei e estou levando comigo. Depois do almoço te ligo e veremos como faço para devolvê-lo a você. Obrigado, por absolutamente tudo".

Augusto Cruz

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