Naquela manhã gelada, despertei antes mesmo do celular. O que realmente não era nada comum para uma pessoa como eu, que não abria a mão de nem um minuto de sono. Mas naquele dia aconteceu diferente: acordei estranhamente disposto, levantei-me, preparei um chocolate morno, tomei um banho quente, revisei meu plano de aula, conversei com minha gata e estiquei o edredom sobre minha cama - logo aquela noite em que havia custado tanto pegar no sono, planejando a viagem que faria nas férias de fim de ano. Escolhi usar um sueter que já havia esquecido no armário e pensei em como fui idiota por deixá-lo lá guardado por tanto tempo, sendo que me vestia tão bem. Resolvi então que iria deixar o carro na garagem e tomar um ônibus, como nos velhos tempos. Deixei os fones de ouvidos na mochila, dei cerca de 240 passos até a esquina e fiquei sentado no meu velho ponto, em frente à praia, apenas ouvindo o barulhos das ondas e saboreando minha nicotina mentolada.
Passei a catraca e havia um banco vago na janela. Fiquei ali admirando a paisagem. O sol beijava as águas de uma forma tão brusca, que sua cor se espalhara por todo o horizonte. Tudo aquilo refletia-se em meus olhos castanhos. Vários estudantes adentravam o ônibus e já era um lugar lotado, mas nem sequer prestei atenção nos rostos que habitavam o mesmo ambiente que meu corpo. Saltei no ponto mais próximo a escola que trabalhava e fui andando até lá.
Logo que o sinal soou, encaminhei-me em direção aos meus alunos que me esperavam em fila indiana, uma das minhas alunas preferidas tomou minha bolsa e seguimos para a sala. A manhã seguiu normal e tranquila. Como sempre, ao passar dos minutos a sala de aula ia ficando mais agitada e as vezes era necessário uma pequena elevação da minha voz.
Na última aula (a tão odiada pelos alunos), estava quase impossível trabalhar. As crianças conversavam alto, estavam inquietas, levantando-se a todo o tempo, gargalhando e então impus respeito e dei um basta. É engraçado lembrar que fiquei mais de 15 minutos em frente ao quadro negro falando aquelas coisas que todos os professores sempre falam; aqueles dizeres que ouvia tantas vezes e desta vez eu estava ali pronunciando. Enquanto meus alunos olhavam atentamente, sem dizer uma palavra, com olhos arregalados e com um certo medo. Pra falar a verdade, eu adorava lecionar. Ser um líder sempre foi minha paixão.
Finalmente a manhã se encerrou e fui atrás de almoço. Atravessei a rua e fui até a conveniência do posto de gasolina comer aquela coxinha que me fazia sentir água na boca só em pensar. Pedi duas e claro, uma latinha de Coca-Cola estúpidamente gelada. Este foi meu almoço do dia: fritura, refrigerante, catchup, solidão. Tentei ligar para minha mãe e lembrá-la que ela precisava depositar o dinheiro do meu aluguel o quanto antes, pois o prazo para o pagamento já estava esgotando, mas o celular dela - pra variar - estava fora de área.
Havia se passado apenas meia hora e faltava mais de uma para que eu precisasse retornar ao colégio para as aulas vespertinas. Se eu estivesse com meu carro, com certeza daria um pulo na casa dos meus avós maternos para dar um cheiro, tomar um copo de água gelada.. Como sempre. Mas como este não era o caso, apenas fui ao banheiro, escovei os dentes, espremi uma espinha que estava nascendo no canto esquerdo da minha sobrancelha direita. Quando me olhei no espelho, vestido com um guarda-pó, barba mal feita e notando meu horário de almoço, senti-me adulto: homem, profissão.. Parecia realizado.
Saí dali e resolvi passar no mercadinho da esquina. Peguei uma revista que trazia uma matéria de capa sobre educação e um punhado de balas de yogurte que seria o suficiente para lotar meu bolso e que provavelmente durariam até o anoitecer. Aguardei a fila do caixa aonde uma simpática senhora estava sendo atendida. Ela parecia ter dificuldades em contar as moedas e ao mesmo tempo em que achei a cena fofa, dei umas risadinhas daquilo. Na hora em que estava sendo atendido percebi uma certa movimentação estranha no mercado. Não tive tempo de notar de quem se tratara mas logo ouvi gritos masculinos impondo silêncio. Caramba, eu estava no meio de um assalto! Se fosse nos meus tempos de estudante, meus amigos diriam: "Bino, é uma cilada." Três homens portando armas de fogo, usando moletons surrados com capuz renderam a funcionária do caixa 3 e ordenaram que todos os clientes deitassem ao chão. Eu não sei o que passou pela minha cabeça, que como um instinto involuntário, pus-me a correr em direção a porta de saída, que estava próxima. Depois disso, lembro de um forte ruído. Meus joelhos, forçadamente, prostaram-se aos chãos e meu corpo atirou-se àquele piso branco em uma fração de segundos. Minhas mãos que carregavam as balinhas de yogurte abriram-se fazendo com que elas se espalhassem a minha frente, mas apenas uma bala foi suficiente para fazer meu sangue escorrer. Uma bala fatal. Meus olhos reviraram lentamente e nada se passava pela minha cabeça naquele instante. Nenhum filme contando minha história, nenhuma das minhas músicas preferidas, nenhuma pessoa confiável para me por em seus braços e fechar meus olhos. Nada dessas coisas que dizem nos filmes. Apenas uma escuridão tomando conta da minha visão turva e uma dor que jamais senti. Eu estava morrendo e não podia fazer nada para impedir aquilo. Morria frustrado por ter uma morte tão banal. Um fim tão rápido, sem nem ao menos deixar oportunidade para "as últimas palavras". Aquelas palavras em que aproveitaria para pedir perdão às pessoas que não tive coragem, para confortar uma duzia de pessoas que chorariam a minha partida.
Se eu soubesse que aquela sexta-feira seria a última da minha vida, talvez eu tivesse dado um beijo no rosto dos meus amigos que moram comigo antes de sair de casa. Teria deixado separado o livro dO Pequeno Príncipe para minha mãe, assim todas as vezes que ela o lesse, lembraria que bastava olhar para as estrelas e ouvir o som do meu gargalhar. Se eu soubesse, teria dito para meu irmão que mesmo em um relaciomento nota 5, eu o admirava, por ser um homem que nunca fui, por ter construído uma família encantadora. Teria abraçado minha irmã e dito que chegaria no céu e a primeira coisa que faria era mandar o anjo mais lindo que habita o paraíso direto para o seu ventre. Teria ligado para meu pai dizendo que o amo, ao invés de cobrar a pensão. Se eu soubesse, teria separado um pertence para cada amigo querido.
Mas eu não fazia a mínima ideia de que justo naquela sexta-feira (uma sexta-feira, assim como o dia que eu nasci) eu seria assunto no noticiário das 7 e inúmeras famílias tomando café da tarde, sentadas no sofá iriam dizer que a violência está incontrolável.
Eu não tive nem a chance de desmarcar os compromissos que assumi para o final de semana. Ninguém me avisou, ninguém nem ao menos me alertou, me preparou.
Terminei com meu corpo violado, com meu sueter tão bonito perfurado, assim como meu coração que era recheado de sentimentos que hoje carrego apenas em minha alma que descança.
Não sabia que junto com aquela bala que se perdeu naquele mercadinho de esquina, estavam se perdendo os inúmeros sonhos que deixei de realizar, os filmes que não assisti no cinema, as festas que não poderia mais frequentar. Perdia-se ali também as ideias que não proclamei, os por-do-sol que não assisti e a chance de ter lutado. Muita coisa estava se perdendo, não era apenas uma bala perdida.
Não é justo que minha vida tenha se perdido. Durante toda ela vivi com intensidade, justamente para não perder nada, agarrando tudo o que estava ao meu alcance. Mas o que viria depois daquele dia e não pude agarrar com a intensidade que carregava comigo em todos os meus dias? Perdeu-se, junto com aquela pequena balinha sem açúcar.
Minha alma, hoje, respira em algum lugar, enquanto meu corpo está debaixo de tais dizeres de mármore, adaptados do verso de Alvares de Azevedo, suficientes para resumir tudo: Foi menino - sonhou - e amou a vida.
Passei a catraca e havia um banco vago na janela. Fiquei ali admirando a paisagem. O sol beijava as águas de uma forma tão brusca, que sua cor se espalhara por todo o horizonte. Tudo aquilo refletia-se em meus olhos castanhos. Vários estudantes adentravam o ônibus e já era um lugar lotado, mas nem sequer prestei atenção nos rostos que habitavam o mesmo ambiente que meu corpo. Saltei no ponto mais próximo a escola que trabalhava e fui andando até lá.
Logo que o sinal soou, encaminhei-me em direção aos meus alunos que me esperavam em fila indiana, uma das minhas alunas preferidas tomou minha bolsa e seguimos para a sala. A manhã seguiu normal e tranquila. Como sempre, ao passar dos minutos a sala de aula ia ficando mais agitada e as vezes era necessário uma pequena elevação da minha voz.
Na última aula (a tão odiada pelos alunos), estava quase impossível trabalhar. As crianças conversavam alto, estavam inquietas, levantando-se a todo o tempo, gargalhando e então impus respeito e dei um basta. É engraçado lembrar que fiquei mais de 15 minutos em frente ao quadro negro falando aquelas coisas que todos os professores sempre falam; aqueles dizeres que ouvia tantas vezes e desta vez eu estava ali pronunciando. Enquanto meus alunos olhavam atentamente, sem dizer uma palavra, com olhos arregalados e com um certo medo. Pra falar a verdade, eu adorava lecionar. Ser um líder sempre foi minha paixão.
Finalmente a manhã se encerrou e fui atrás de almoço. Atravessei a rua e fui até a conveniência do posto de gasolina comer aquela coxinha que me fazia sentir água na boca só em pensar. Pedi duas e claro, uma latinha de Coca-Cola estúpidamente gelada. Este foi meu almoço do dia: fritura, refrigerante, catchup, solidão. Tentei ligar para minha mãe e lembrá-la que ela precisava depositar o dinheiro do meu aluguel o quanto antes, pois o prazo para o pagamento já estava esgotando, mas o celular dela - pra variar - estava fora de área.
Havia se passado apenas meia hora e faltava mais de uma para que eu precisasse retornar ao colégio para as aulas vespertinas. Se eu estivesse com meu carro, com certeza daria um pulo na casa dos meus avós maternos para dar um cheiro, tomar um copo de água gelada.. Como sempre. Mas como este não era o caso, apenas fui ao banheiro, escovei os dentes, espremi uma espinha que estava nascendo no canto esquerdo da minha sobrancelha direita. Quando me olhei no espelho, vestido com um guarda-pó, barba mal feita e notando meu horário de almoço, senti-me adulto: homem, profissão.. Parecia realizado.
Saí dali e resolvi passar no mercadinho da esquina. Peguei uma revista que trazia uma matéria de capa sobre educação e um punhado de balas de yogurte que seria o suficiente para lotar meu bolso e que provavelmente durariam até o anoitecer. Aguardei a fila do caixa aonde uma simpática senhora estava sendo atendida. Ela parecia ter dificuldades em contar as moedas e ao mesmo tempo em que achei a cena fofa, dei umas risadinhas daquilo. Na hora em que estava sendo atendido percebi uma certa movimentação estranha no mercado. Não tive tempo de notar de quem se tratara mas logo ouvi gritos masculinos impondo silêncio. Caramba, eu estava no meio de um assalto! Se fosse nos meus tempos de estudante, meus amigos diriam: "Bino, é uma cilada." Três homens portando armas de fogo, usando moletons surrados com capuz renderam a funcionária do caixa 3 e ordenaram que todos os clientes deitassem ao chão. Eu não sei o que passou pela minha cabeça, que como um instinto involuntário, pus-me a correr em direção a porta de saída, que estava próxima. Depois disso, lembro de um forte ruído. Meus joelhos, forçadamente, prostaram-se aos chãos e meu corpo atirou-se àquele piso branco em uma fração de segundos. Minhas mãos que carregavam as balinhas de yogurte abriram-se fazendo com que elas se espalhassem a minha frente, mas apenas uma bala foi suficiente para fazer meu sangue escorrer. Uma bala fatal. Meus olhos reviraram lentamente e nada se passava pela minha cabeça naquele instante. Nenhum filme contando minha história, nenhuma das minhas músicas preferidas, nenhuma pessoa confiável para me por em seus braços e fechar meus olhos. Nada dessas coisas que dizem nos filmes. Apenas uma escuridão tomando conta da minha visão turva e uma dor que jamais senti. Eu estava morrendo e não podia fazer nada para impedir aquilo. Morria frustrado por ter uma morte tão banal. Um fim tão rápido, sem nem ao menos deixar oportunidade para "as últimas palavras". Aquelas palavras em que aproveitaria para pedir perdão às pessoas que não tive coragem, para confortar uma duzia de pessoas que chorariam a minha partida.
Se eu soubesse que aquela sexta-feira seria a última da minha vida, talvez eu tivesse dado um beijo no rosto dos meus amigos que moram comigo antes de sair de casa. Teria deixado separado o livro dO Pequeno Príncipe para minha mãe, assim todas as vezes que ela o lesse, lembraria que bastava olhar para as estrelas e ouvir o som do meu gargalhar. Se eu soubesse, teria dito para meu irmão que mesmo em um relaciomento nota 5, eu o admirava, por ser um homem que nunca fui, por ter construído uma família encantadora. Teria abraçado minha irmã e dito que chegaria no céu e a primeira coisa que faria era mandar o anjo mais lindo que habita o paraíso direto para o seu ventre. Teria ligado para meu pai dizendo que o amo, ao invés de cobrar a pensão. Se eu soubesse, teria separado um pertence para cada amigo querido.
Mas eu não fazia a mínima ideia de que justo naquela sexta-feira (uma sexta-feira, assim como o dia que eu nasci) eu seria assunto no noticiário das 7 e inúmeras famílias tomando café da tarde, sentadas no sofá iriam dizer que a violência está incontrolável.
Eu não tive nem a chance de desmarcar os compromissos que assumi para o final de semana. Ninguém me avisou, ninguém nem ao menos me alertou, me preparou.
Terminei com meu corpo violado, com meu sueter tão bonito perfurado, assim como meu coração que era recheado de sentimentos que hoje carrego apenas em minha alma que descança.
Não sabia que junto com aquela bala que se perdeu naquele mercadinho de esquina, estavam se perdendo os inúmeros sonhos que deixei de realizar, os filmes que não assisti no cinema, as festas que não poderia mais frequentar. Perdia-se ali também as ideias que não proclamei, os por-do-sol que não assisti e a chance de ter lutado. Muita coisa estava se perdendo, não era apenas uma bala perdida.
Não é justo que minha vida tenha se perdido. Durante toda ela vivi com intensidade, justamente para não perder nada, agarrando tudo o que estava ao meu alcance. Mas o que viria depois daquele dia e não pude agarrar com a intensidade que carregava comigo em todos os meus dias? Perdeu-se, junto com aquela pequena balinha sem açúcar.
Minha alma, hoje, respira em algum lugar, enquanto meu corpo está debaixo de tais dizeres de mármore, adaptados do verso de Alvares de Azevedo, suficientes para resumir tudo: Foi menino - sonhou - e amou a vida.
Augusto Cruz
Um comentário:
Me orgulho de ti cada vez que abro esse blog! te amo.
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